(Musica, desenho e excerto elaborado por: Xufre)
Acordei
tarde esperando viver menos um pouco do que se acordasse mais cedo. O corpo
doía-me por ter passado longas horas deitado, os olhos estavam irritados,
feridos pela luz do meio da tarde.
Olhei o
espelho ao lado da cama, vi um quarto caótico, cheio de tralha e vazio de
emoções, o sol passava radiante por entre as frestas das persianas batendo-me
no corpo. Lembrei-me de mim…de quanto me odeio, de quanto considero a minha
existência nula. Era tempo de fazer qualquer coisa.
Levantei-me.
Vesti-me com roupas que não deixam transparecer a forma do meu corpo; discreto
e deserto, procurei que a minha apatia fosse manifestada claramente,
mantendo-me assim afastado de qualquer contacto, ou relação com qualquer pessoa
ou situação. E sai de casa.
Óculos
negros colocados na face, passo lento e próximo às paredes que delimitam a rua,
refugio-me da luz, observo os carros, as pessoas, os excrementos, os animais,
os fios eléctricos do tecto da cidade, respiro fundo concentrando-me na busca
de um sentido na vida.
Não sei
se estes momentos são coisas passageiras, mas se o são estão a demorar em
excesso para passar, e além disso são estes momentos que me fazem sentir vivo…
Na
mente ecoa um ritmo electrizante, maquinal e repetitivo, entro num transe
sustentado pela divagação no mundo urbano, esvaio-me de qualquer emoção por
mais ténue que seja, transformo-me num sistema composto por binários simples,
equilibrados pela própria tensão do desequilíbrio e transcendo para um mundo
que apenas existe cá dentro. Sinto-me o Universo!
Anti
-cientifico por natureza, refundo-me nos múltiplos universos que dão forma a
este corpo, perco-me na imensidão física e na possibilidade de existir vida em
mim, planetas e estrelas a uma escala invisível à nossa magnânime perspectiva
de topo da cadeia alimentar.
Neste
estado fatídico de extrema solidão reparo que a imaginação potencia a
alucinação de pensamentos desconexos, pensamentos esses, que moldam o espaço e
o rumo que a vida leva…penso que sou anti – tudo e pró – liberdade, pró –
liberdade é ser anti – condicionalismos e vomitar imagens de extrema beleza e
crueldade, ver o sangue a jorrar de um crânio simetricamente rasgado, a pele de
uma mulher pálida e aquele vermelho desconcertante deslizando suave e quente,
roçando os lábios, sabendo a ferro.
Ardente
de vingança e de inadaptação, vejo o caminho cobarde de matar tudo o que
pertence à humanidade como um escape ao suicídio. Bombas atómicas que devastam
qualquer ser com inteligência. Quero uma nova oportunidade para que a natureza
se reconfigure e perdure submersa nas suas leis inquestionáveis, nos seus
fenómenos regenerativos e automáticos sujeitos a uma regra caótica e evolutiva,
destrutiva se necessário, mas livre de nós, do nosso génio intelectual, egoísta
e criativo.
Livre
de politicas competitivas pelo poder, corruptas pela mesmo desejo que as
motiva,…, a mesquinhez deste sistema redutor fortemente sedutor e pouco
solidário, capaz de transformar as imagens do paraíso num purgatório ilusório
de uma realidade caustica e infernal em que todos representam o que não é da
sua real essência.
Prudência
e medidas de bom tom, deveriam estar incutidas neste discurso de assassinato,
mas a minha essência não é assim e dou por mim isolado em clemência fetal,
ansiando que a era de uma nova consciência global brote por artes mágicas no
nosso modo de pensar e destrua os alicerces da nossa sociedade, originando quem
sabe uma nova Atlântida em que todos sejamos escravos do amor e da felicidade.
Anedótico
é o mínimo que posso dizer do que aqui exponho, cómico e infantil, drama
romântico de uma criança que não quer crescer para o mundo que herdou. Morte a
tudo e a mim, morte sim! Morte para aqui e para lá,…, infantil e anedótico no
mínimo!
Onde
estou? Limpo a viseira que me veda o olhar para o exterior e vejo que tenho
árvores e vento, carros e casas, pessoas, pássaros e gatos, números, mecanismos
e sinalética…estou numa rua qualquer, perto de um sitio qualquer que não
interessa a ninguém, sinto que os meus genes estão saudosos de um primitivo
nomadismo em que a referência era apenas a paisagem virgem. Tenho saudades de
andar nu ao sol, ao frio, à luz da lua, sem saber que a roda existe e sem
inteligência suficiente para inventar histórias que justificam o surgimento do
mundo, olhar para um relâmpago e urinar com medo dele.
Divago
e divago um pouco mais até ser noite. Vou para a cama e fantasio com mulheres,
fantasio com um único casal solto neste planeta e com todas as opções a seguir,
ainda por seguir, penso na descoberta do sexo através da imitação dos outros
animais, e o medo de ver os rebentos a serem capturados nas garras de uma águia
real, ou pelos dentes risonhos de uma hiena.
Fico
com erecção destemida só de imaginar que esse Homem primogénito podia ser eu, e
toda a tusa se esvai por saber que mesmo sendo o primeiro não seria de certo o
último e o caminho dos descendentes podia levar ao mesmo estado em que nos
encontramos agora…
Ouvi o
meu nome pairando no ar e despertei para onde estava, perto de um cruzamento no
final do terceiro quarteirão a norte da minha casa. Era o homem do talho que me
cumprimentava, afiando a sua faca à beira da porta do estabelecimento numa
daquelas rodas de pedra antiga, que eram usadas pelos amoladores que musicavam
o ar com sons feitos de sopro na sua bicicleta passageira.
No entanto não foi a pedra que me chamara a
atenção, mas sim o meu nome e o brilho intenso do gume afiado que transformara
a faca no sol daquele momento.
- Boa
tarde, como está?
Perguntei
por mera educação, pois não me interessava para nada a resposta que se poderia
seguir, mas felizmente o barulho da sua actividade momentânea não o deixara
entender com precisão o que eu lhe havia perguntado. Apenas acenou e prossegui
o meu caminho.